segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Dolores Umbridge e Harry Potter: professores diferentes sob a ótica de Paulo Freire

Esse é um trabalho de Didática que eu escrevi em 2007, durante a transição da Química pro Inglês. É a minha contribuição pro Dia do Professor de hoje. UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO DEPARTAMENTO DE ENSINO E EDUCAÇÃO DIDÁTICA GERAL PROFESSORA LUCIANA GELSLEUCHTER LOHN ACADÊMICA MEGGIE ROSAR FORNAZARI FLORIANÓPOLIS, 4 DE NOVEMBRO DE 2007 RESENHA: A concepção “bancária” da educação como instrumento da opressão. Seus pressupostos, sua crítica.
No capítulo escrito por Paulo Freire, são analisados dois tipos de relações educador-educandos: a educação bancária e a educação problematizadora. A educação bancária tem caráter narrador, sendo o educador seu agente indiscutível. Este tem como tarefa irrecusável encher os potes dos educandos com o conteúdo de sua narração. Sua qualidade como educador se reflete em quão cheios estão esses potes. Por sua vez, a qualidade de um educando se reflete em quão docilmente ele permaneça em seu pote, e se deixe encher. A única ação possível aos educandos é receber e arquivar os depósitos. Acontece que, neste formato de educação, não existe o saber. Não se aprende. Só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e com os outros. A noção de saber, nessa educação opressora, é a doação de conteúdo dos supostos sábios, aos supostos alunos (palavra vinda do latim, significando sem luz). Em todo momento, o educador sabe e os educandos não. Esse pensamento nega o conhecimento como um processo de busca. O educador acredita que a ignorância dos educandos é sua razão de existir, e os educandos acreditam que a sua ignorância alimenta o propósito do educador. Na educação problematizadora, o desejo é de que o educador desça do pedestal, e os educandos saiam dos potes e subam neles. Em um patamar médio e igual a todos, se tornam educador-educando e educandos-educadores, aprendendo juntos. Os educandos bancários, quanto mais depósitos arquivarem, menos consciências críticas terão de si e do mundo, como sujeitos. A passividade lhes é imposta, e se conformam com ela, como é objetivo dos opressores. Inertes, os educandos não transformam o mundo, e isso mantém as situações das quais os opressores se beneficiam. Quanto melhor adaptados os educandos, mais fácil é dominá-los. Os opressores assumem um caráter paternalista, marginalizam os homens e, por meio da educação opressora, os integram à sociedade dada como sadia.
Essa educação bancária e opressora tem uma expressão visual no videoclipe The Wall, da banda Pink Floyd. Nele, crianças sem rosto são educadas numa mistura de escola com indústria, cujo produto final é idêntico: crianças iguais, que pensam igual, dóceis como gado em direção ao abate. É uma visão extrema, mas mostra exatamente o conceito da educação bancária. A solução para a situação dos educandos deve ser transformar a estrutura que os oprime, a fim de que sejam livres em pensamento. A educação bancária não se orienta para a conscientização dos educandos. Os educadores bancários acreditam que pensar autenticamente é perigoso. Isso nega totalmente a vocação humana de ser cada vez mais. Em certos casos, os depósitos causam um confronto com a realidade, despertando os educandos contra sua domesticação. A concepção problematizadora e libertadora da educação. Seus pressupostos. A ação do educador humanista deve se orientar na humanização dos educandos, assim como a sua própria, aprendendo com os educandos ao mesmo tempo em que estes aprendem com ele. Deve-se causar um pensar autêntico, e evitar depositar o saber, criando uma relação de companheirismo com os educandos.
Um exemplo visto recentemente deste educador humanista é o personagem do professor Clément Mathieu, do filme Les Choristes (A Voz do Coração, 2004). O primeiro passo dele como inspetor foi criar laços de confiança entre ele e os internos. Paulo Freire afirma que a educação reflete a estrutura do poder. Se trouxermos esta afirmação para os dias atuais, no governo Lula a educação brasileira se concentra no ensino fundamental: todo cidadão brasileiro deve saber ler e escrever. Em muitos casos, se aprende a ler as letras e se mantêm analfabetos funcionais. Nota: Depois de ver o investimento feito no ensino superior até o fim do segundo mandato do governo Lula, o reflexo mudou bastante. Ainda assim, há muito a fazer. A concepção “bancária” e a contradição educador-educando Esta concepção sugere que os homens vivem no mundo, e não com o mundo e com os outros. O educando é convencido a acreditar que o mundo que o cerca está somente à sua volta, e não faz parte dele mesmo. A consciência e a relação desta consciência com o mundo é algo escancarado como um pote. Os opressores se preocupam quando os homens questionarem seu mundo, e por isso se esforçam tanto em dificultar e proibir o pensar autêntico. Desse modo, estes educadores não conseguem compreender que permanecer na lembrança de seus educandos é exatamente buscar ser parte do grupo, com os outros, convivendo, e não se impondo. A comunicação é temida por esse educador, porque sua prática pode ser criticada. E ai de quem criticá-la. Ele crê piamente que sabe de tudo, e que ninguém pode questionar sua habilidade.
O autor menciona um exemplo mitológico, ao afirmar que o pensar não pode ser feito no isolamento, na torre de marfim. A Torre de Marfim é um prédio recorrente em histórias de mitologia celta medieval, pois é o local onde se formam os melhores magos. Na era medieval, eram chamados de magos aqueles que detinham o maior conhecimento – e não o compartilhavam com o povo. Os magos da Torre de Marfim são as elites do conhecimento – e detêm o conhecimento mais antigo, e mais eficaz. E esses magos são da educação bancária, pois se ressentem do fato que alguns dos seus se libertaram da Torre de Marfim – um lugar tão seguro e poderoso – para ensinar à plebe. Eles são representações fantasiosas da elite opressora, que não quer que o povo saiba do maior conhecimento, pois eles sabem que conhecimento é poder. O pensar deve sair da Torre de Marfim e deve ser baseado na comunicação, gerando ação sobre o mundo, evitando a dominação de poucos sobre muitos. Erich Fromm chega a ligar o pensamento bancário à necrofilia (amor à morte), pois o educador bancário ama quando o educando não cresce, e não vive, perdendo a organicidade do ser. Educadores necrófilos prezam a memória de outros em detrimento da experiência dos educandos, e o que se tem em detrimento do que se é. Se sua posição é ameaçada, ele se sente pessoalmente ameaçado, pois seu amor é pelo controle. Ao controlar, acaba com a vida. Essa imagem é chocante, especialmente para educadores em formação que somos, românticos e ingênuos. Mas na verdade, nunca estaremos completos. A opressão é um controle esmagador e, portanto, é necrófila. Como a educação bancária serve aos propósitos dos opressores, também é necrófila. O homem sofre quando é proibido de viver, e isso pode às vezes causar uma onda de recusa a essa impotência. Alguns participam simbolicamente do poder, sendo iludidos por essa suposta atuação libertadora, mas na realidade estão se submetendo aos opressores. A maioria se identifica com líderes populistas, e se ilude ainda mais.
A rebeldia é remediada com mais dominação, em nome de um bem maior, que na verdade é o bem dos dominadores. No livro Harry Potter and the Deathly Hallows, (Harry Potter e as Relíquias Mortais), o jovem Albus Dumbledore planeja uma dominação dos bruxos sobre os trouxas (pessoas não-mágicas). Se houver resistência, serão sacrificadas algumas centenas de pessoas, para o bem maior. A autora da série Harry Potter, J.K. Rowling, se valeu de fantasia e magia para mostrar vários níveis de crítica sócio-política, e "para o bem maior" é um deles. A educação se torna uma prática de dominação neste pensamento educativo, acomodando os educandos no mundo opressor. O texto tem como objetivo chamar a atenção dos educadores humanistas, para que não se sirvam da concepção bancária, e se contradigam. Pretendendo libertar, acabam por usar instrumentos de alienação típicos do ensino bancário. A libertação autêntica pede ação e reflexão dos homens sobre o mundo, para que possam transformar esse mundo. Não se pode aceitar que esta educação libertadora use ferramentas bancárias e depósitos. O objetivo da educação libertadora deve ser o de formar homens conscientes, com intenção de transformar o mundo, por meio da problematização dos homens em suas relações com o mundo. Na educação libertadora, há uma resposta à essência curiosa da consciência humana, existencializada pela comunicação. Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, Os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo. Este subtítulo se baseia no conceito de curiosidade. A curiosidade do educando deve ser explorada pelo educador, e relacionada ao mundo, a fim de que o educando aprenda – e o educador aprenda com a experiência. O autodidatismo se aplica a esse conceito, pois é uma relação homem-mundo, engatilhada pela curiosidade humana. A relação ideal da educação libertadora é baseada em um educador-educando e seus educandos-educadores. A ferramenta-chave é o diálogo, enquanto no ensino bancário a ferramenta é a narração. É essencial a pluralidade de opiniões e da troca ativa de experiências. Tanto educador quanto educandos aprendem juntos, um com o outro, e crescem, sem autoritarismo, formando pensamentos livres em comunhão. No ensino bancário, o mestre estuda o objeto de sua aula e a prepara, dissertando sobre suas descobertas no momento da aula, enquanto os alunos registram o que ouvem. O educador se dá por satisfeito com a aula, pois preservou a cultura e o conhecimento na memória dos alunos. De acordo com Paulo Freire, desta forma ninguém aprende realmente, e não obtém cultura alguma.
Temos um exemplo visível desse caso de ensino no filme Harry Potter e a Ordem da Fênix. Dolores Umbridge, a mando do Ministério da Magia, é a professora encaminhada para uma matéria na escola de magia da Grã-Bretanha. A intenção do Ministério é preservar sua fachada intacta, negando que existe uma guerra iminente, e não preparando seus educandos apropriadamente. Eventualmente, os educandos tomam as rédeas da situação e formam um grupo secreto de estudo (a Armada de Dumbledore), problematizando a situação e procurando meios para resolvê-la, com um educador-educando guiando os estudos práticos e dialógicos dos educandos-educadores – o próprio Harry Potter.
Esse exemplo mostra exatamente o contraste entre as educações bancária e libertadora. No ensino bancário, ninguém aprende porque os educandos não conhecem o assunto, apenas o memorizam. A prática bancária anestesia, enquanto a prática libertadora mostra a realidade. Problematizando as situações, os educandos se sentem desafiados e se sentem obrigados a responder ao desafio. A consciência e o mundo interagem simultaneamente. Deve haver uma consciência do mundo, e quem faz isso é o homem. Com o ensino libertador, o homem dirige seu olhar e percebe coisas que antes, passavam despercebidas. O que antes parecia óbvio ou objetivo, agora recebe destaque e se torna um desafio, e é admirado pelo homem. Só então o homem pode agir sobre essas coisas, e conhece-las. Seu poder de captação é desenvolvido em suas relações homem-homens-mundo, exibindo uma realidade em transformação. Por fim, desenvolvem um pensar autêntico, e atuam sobre ele. Esse ensino se fundamenta na criatividade humana, estimulando a reflexão e a ação verdadeiras, respondendo à vocação humana – só se é homem autêntico quando se tem uma busca, ou se está numa transformação. O homem como um ser inconcluso, consciente de sua inconclusão, E seu permanente movimento em busca do ser mais. O ensino problematizador parte do fato que o homem é uma criatura histórica. São seres que não são, mas estão sendo, inconclusos em um mundo inacabado, interagindo com esse mundo inacabado. E o homem tem consciência disso (só sei que nada sei), pois foi daí que se criou a educação.
A educação problematizadora reforça a mudança, não se conformando nem com o presente bem-comportado, nem com o futuro pré-dado. Com as raízes no presente real, esta mudança se torna uma revolução. Voltamos ao exemplo de Harry Potter e a Ordem da Fênix. O autoritarismo da professora Umbridge provoca uma revolta aberta contra a situação opressora. Dessa forma, se firmam as bases para o futuro revolucionário daquela geração de magos e bruxas. No mundo real, temos exemplos de problematizados revolucionários no Brasil, durante o período da ditadura militar (1964-1989). Vários dos ativistas pró-redemocratização eram estudantes. O homem é um projeto. Ele caminha para frente, olha para frente, e nada pode impedi-lo. O passado não é um lugar para o qual se queria voltar, e sim um meio de melhor conhecer o que é o agora, e construir um futuro melhor. Esse movimento só pode vir do próprio homem, e de suas relações homens-mundo, e de sua consciência nessas relações. A situação se torna um desafio, que o limita sem impedi-lo. O homem problematizado sabe lidar com este problema objetivamente. Por fim, a situação é apropriada pelo homem, que a transforma. A busca de ser cada vez mais desses muitos deve ser feita em comunhão e não individualmente, sem impedir que outros também procurem ser cada vez mais. Os dominados, quando problematizados, lutam por sua emancipação, superando a falsa consciência do mundo. Nenhuma ordem opressora suportaria que os oprimidos todos passassem a dizer: Por quê? . A revolução deve ocorrer a cada instante, dentro ou fora dos círculos de poder. Fontes: Rocha, Ruth. Quando a escola é de vidro. Freire, Paulo. A concepção “bancária” da educação como instrumento de opressão. Seus pressupostos, sua crítica.

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